Democracia:

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"Ensina-me SENHOR a ver as minhas próprias faltas e apaga-me a vocação de descobrir as faltas alheias." Emanuel

domingo, 27 de dezembro de 2009

Monicelli

Roma: Mario Monicelli
na fábrica ocupada
.
Por Osvaldo Coggiola, de Roma




O autor, Coggiola, e
o diretor Mario Monicelli

Ombro a ombro com os trabalhadores em luta por seus direitos, lá estava ele, o grande diretor de cinema Mario Monicelli, hoje com 95 anos.

Na periferia industrial de Roma, na Tiburtina, a fábrica Eutelia, uma das mais importantes da área de informática da Itália, foi fechada pelos seus donos, demitindo 1200 trabalhadores. Faz mais de um mês, a fábrica foi ocupada pelos operários e posta para produzir. A 10 de novembro, os trabalhadores repeliram um ataque de bandas parapoliciais (“vigilantes”). A 25 de novembro, um ato-festival foi realizado na fábrica, com oradores e grupos musicais, para receber solidariedade e divulgar a luta. Lá fui eu, levar meu apoio e saber o que rolava.

O ato era bastante pequeno, pouco numeroso. Os oradores sindicais (FIOM-CGIL) apelavam para a sensibilidade das autoridades, fustigavam os donos pela sua “má gestão da empresa”, criticavam a mídia. Até que um orador, bem mais velho, tomou a palavra e, falando com energia, responsabilizou o capitalismo, e chamou à unidade dos ocupantes da Eutelia com os outros trabalhadores da Itália que lutam pelos mesmos motivos, em especial os sardos e venetos da Alcoa (que dias depois enfrentaram a polícia, em manifestação nas ruas de Roma).


Quem era ele? Ninguém menos que Mario Monicelli, o diretor e roteirista de L' Armata Brancaleone, I Compagni, I Soliti Ignoti, Brancaleone nelle Crociate, Romanzo Popolare, Amici Miei, Parenti Serpenti, e tantos outros filmes, que já não são só parte dos clássicos do cinema italiano, mas da própria cultura universal (viraram até expressões usadas na linguagem corrente). O único regista italiano que conseguiu reunir, num só filme, Albertone Sordi e Totò, os dois maiores comediantes do cinema italiano em todos os tempos.

Lá estava ele, com seus 95 anos (sim, noventa e cinco), falando com a energia de um garoto, chamando à unidade dos trabalhadores, sublinhando e encorajando o papel das mulheres na luta de classes, ele que o filmou como ninguém no fantástico I Compagni, de 1961 (Mario Monicelli, Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, Annie Girardot: muito tempo passará até outro filme reunir quatro gênios como esses...), quando os movimentos feministas, na Europa e no mundo, apenas engatinhavam.

Fui falar com ele, ele sentado no meio dos operários, o vencedor dos Festivais de Veneza e Berlim, bebendo seu cafezinho. A conversa não foi fácil, ele está começando a ter problemas auditivos (embora se negue a usar aparelho de ouvido), mas foi o suficiente para me dizer que continua “mais comunista do que nunca”. E falava com qualquer um que quisesse falar com ele, eu inclusive.

Pensei: não sou da geração da Internet e do celular, do hi-phone e do skype, do sei lá mais o quê (não consigo nem acompanhar), das viagens fáceis para qualquer lugar, e não me considero sortudo por isso (bem ao contrário); mas sou da geração à qual Monicelli (e os poucos que estavam à sua altura) ensinou, depois de passar pelo fascismo e pela guerra, coisas que, hoje, nos fazem sorrir quando vemos (ou lemos, ou assistimos) “desconstruções” dos “ocidentalismos” (e dos “orientalismos” ad hoc), defesas dos “multiculturalismos”, ou “re-inclusões” dos “excluídos da história” - num festival de populismos intelectuais paternalistas de terceira categoria, que passam por “novidade”. Sem falar em algumas “criacionices” cinematográficas, hollywoodianas ou não, que, perto dos filmes de Monicelli parecem obras de estudantes desorientados de cinema do primeiro ano da ECA-USP...

Monicelli nos fez viver o sublime e o ridículo dos desempregados/ladrões amadores do capitalismo hodierno (em I Soliti Ignoti), nos mostrou como os “excluídos” se “incluíam” sozinhos (em I Compagni) e se fusionavam, no partido operário, com a intelectualidade revolucionária... e também ingênua (Mastroianni!), justamente porque revolucionária. E os dois “Brancaleone” são muito mais que “comédias italianas”: décadas antes que isso virasse “moda”, Monicelli explodiu, a tiros de gargalhada, todos os euro/cristiano-centrismos – Monicelli/Gassman, encontros como esse só acontecem dois ou três por século (outro gênio do século XX, este lamentavelmente morto - prematuramente -, Bernard-Marie Koltès, acabou com todo o racismo anti-árabe que grassa na Europa, com uma só frase: “Se na França não houvesse árabes, ela seria igual à Suíça”).

Monicelli, o único intelectual italiano na ocupação da fábrica, com seus 95 anos, um dos maiores diretores de cinema do século XX, e também do século XXI (quem duvidar, que assista Lettere della Palestina, de 2002, ou Le Rose del Deserto, de 2007), um jovem quase centenário, porque artista e comunista.

Vão aí algumas fotos da ocupação da Eutélia, da luta contra a polícia dos operários da Alcoa, e uma de Monicelli comigo no ato-festival, lamentavelmente pouco clara, porque tirada com um celular chinês (mas não comunista).

Ciao, grande Mario, nos vemos na próxima ocupação de fábrica, para falarmos de internacionalismo e comunismo. Monicelli ficou até o final do ato, depois o acompanhamos até o ponto onde tomou, sozinho, o táxi que o levou à casa; eu fui andando até meu ponto de ônibus que, afinal, sou um adolescente.

20/12/2009

Fonte: ViaPolítica/Tlaxcala/O autor

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Mais sobre o autor:
Osvaldo Coggiola é um intelectual trotskista argentino. Possui graduação em História pela Universidade de Paris VIII (1977), graduação em Economia pela Universidade de Paris VIII (1979), especialização em História pela Universidade de Paris VIII (1979), mestrado em História pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais/França (1980) , doutorado em História Comparada das Sociedades Contemporâneas pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais/França (1983) e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (1998) . Atualmente, é professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e professor nos cursos de jornalismo e economia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coggiola tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente em temas como Comunismo, União Soviética e Economia Marxista. (wikipedia)

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Artigo original de 5/12/2009

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