Democracia:

Democracia:
"Ensina-me SENHOR a ver as minhas próprias faltas e apaga-me a vocação de descobrir as faltas alheias." Emanuel

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Europa

A Europa em marcha-à-ré
By
Antonio Martins
– 23/11/2010
3Share

Quebra da Irlanda confirma: “resposta” europeia à crise é a pior possível. Mas retrocesso continua, porque faltam alternativas e há um ganhador oculto: a poderosa máquina de exportação da Alemanha
Depois de semanas de relutância, o governo irlandês jogou a toalha domingo e pediu socorro à União Europeia (UE) e ao FMI. Receberá, nos próximos meses, um empréstimo que poderá chegar a 100 bilhões de euros. Como de praxe nestas operações, nenhum centavo irrigará a economia, muito menos a sociedade: tudo será destinado para remunerar os credores do país.
Aos irlandeses, caberá uma nova rodada de sacrifícios. Nos últimos meses, eles já haviam sido levados a aceitar um corte brutal nos direitos sociais (inclui reduções de salários e desmantelamento da assistência médica gratuita aos idosos, como mostra nossa matéria a respeito) e o resgate, pelo Estado, de três grandes bancos quebrados. Novas medidas serão anunciadas em 5 de dezembro. Mantidas em sigilo, elas parecem graves a ponto de levarem o primeiro-ministro, Brian Cowen, a prometer, para o início do próximo ano, eleições antecipadas – que provavelmente liquidarão seu mandato, mas não diminuirão o retrocesso social.
A quebra da Irlanda segue-se à da Grécia e, salvo em caso de reviravolta, será acompanhada em breve pela de Portugal e da Espanha. Itália e a própria Inglaterra – um dos grandes centros financeiros do mundo – estão intranquilas. A Europa, que no pós-II Guerra estabeleceu formas inovadoras de criar e distribuir riqueza e instituiu o Estado de Bem-Estar Social, agora trocou de papéis. É a região do mundo de onde vem a resposta mais conservadora, burocrática e retrógradas à crise global.
Ela tem dois pilares. O primeiro é a crença na ideia simplória segundo a qual os Estados devem responder a uma crise financeira grave cortando despesas. Logo após a queda da bolsa de Nova York, em 1929, esta postura foi adotada pela maior parte dos países ricos, após a quebra da bolsa. Projetou a economia mundial numa depressão profunda, que suscitou desemprego em massa, guerras comerciais, ondas de nacionalismo xenofóbico e… o nazi-fascismo.
Nos desdobramentos da crise iniciada em 2008, sobressaem três respostas. Em países como a China e o Brasil, os Estados procuram reanimar a economia por meio de investimentos sociais (aumento dos salários e benefícios), em infra-estrutura ou ambos. Nos Estados Unidos, prevalece uma postura mista. Barack Obama propôs uma reforma avançada no sistema de Saúde (que conseguiu emplacar parcialmente), mas também fala em cortar gastos públicos. Além disso, aposta num crescimento ainda maior da capacidade militar dos EUA (veja artigo de José Luís Fiori a respeito), e manobra com o poder de “criar” riqueza imprimindo a única moeda de circulação global.
No Velho Continente, não há sequer esta ambiguidade. O Banco Central Europeu, que também teria capacidade de irrigar a economia, recusa-se a fazê-lo. Os Estados-membros da UE quase não têm margem para estimular suas próprias economias – porque estão constrangidos pelas normas comuns do bloco, que os impedem de se endividar. E os órgãos que dirigem a União recusam-se a adotar políticas de investimento em direitos sociais ou obras públicas.
O resultado é uma camisa-de-força que deixa aos Estados nacionais, como única saída, o segundo pilar da “resposta” europeia à crise: um ataque generalizado aos direitos sociais e serviços públicos (veja nossa reportagem e, ao final, exame das medidas adotadas em cada país). Os resultados são os previsíveis. Como demonstrado no século passado (e nas crises cambiais latino-americanas, entre as décadas de 1980 e 2000), os “ajustes fiscais” golpeiam a sociedade, mas nunca satisfazem os credores. Cada concessão é vista como uma demonstração de fraqueza e um sinal de que é possível exigir ainda mais. Nesta segunda-feira (22/11), logo após a capitulação da Irlanda, os mercados financeiros passaram a exigir, de Portugal e Espanha, taxas de juros ainda mais elevadas para a rolagem de suas dívidas.
Dois fatores ajudam a entender por que a Europa sucumbe a esta espiral regressiva. O primeiro é uma crise profunda da esquerda institucional — que parece, em suas diversas vertentes, presa ao século passado. A social-democracia esteve no governo de quase todos os países europeus, ao longo das duas últimas décadas. Ao fazê-lo, numa época em que o neoliberalismo era hegemônico, comprometeu-se diversas vezes com políticas de corte de direitos semelhantes às atuais – ainda que mais brandas. Não é capaz, agora, de enxergar, que a crise reembaralhou as cartas, que respostas novas são possíveis, que é permitido ousar. Na Grécia, em Portugal e na Espanha, as medidas brutais que estão violando o Estado do Bem-Estar Social são adotadas por partidos “socialistas”.
Mas a esquerda radical não é muito diferente, na insensibilidade aos novos tempos. Com as possíveis exceções de Portugal e da Alemanha, continua presa apenas à denúncia e à resistência. Sem ambição para formular alternativas, sem pique para dialogar com setores sociais emergentes, que se orientam por lógicas não-convencionais para os europeus: os imigrantes, por exemplo.
O segundo motor que empurra e Europa para trás é concreto e poderoso. Desde 2009, quando reelegeu-se com base num governo claramente à direita, a chanceler alemã Angela Merkel tem sido a defensora destacada das políticas de “ajuste fiscal” e “austeridade”. Não o faz por mera defesa de valores ideológicos. A economia da Alemanha está posicionada de modo muito particular, na conjuntura que se abriu após a crise.
Há um setor exportador muito robusto, que tira proveito inclusive do desenvolvimento acelerado dos países do Sul. Produz bens de capital sofisticados – máquinas necessárias para o avanço da indústria ou o desenvolvimento da infra-estrutura em países distintos como China, Índia, Angola, Brasil. Ou vende bens de luxo (automóveis Mercedes-Benz ou BMW, digamos) para os novos ricos que estão surgindo nos “mercados emergentes”.
Basta uma rápida consulta aos números da macroeconomia mundial para demonstrar o fenômeno. No período de doze meses encerrado em setembro, a Alemanha obteve o maior superávit comercial do planeta: 210 bilhões de dólares, 20% superior ao da tão falada China e em absoluto contraste, por exemplo, com os déficits da França (- US$ 69,6 bilhões), Reino Unido (-142,8 bi) ou Espanha (-72,9 bi). Impulsionada por este movimento, a economia alemã cresceu 9% no terceiro trimestre do ano – enquanto o resto da Europa vive dificuldades crescentes.
Para grandes empresas germânicas – e para os planos de médio prazo de Angela Merkel (ela só terá de submeter-se a eleições em 2003) – interessa consolidar a posição da Alemanha como grande exportador mundial. A redução de direitos sociais e salários contribuem para tanto: refreiam a capacidade de adquirir produtos importados e barateiam a produção. Neste exato momento, as federações empresariais alemãs estão estimulando seu governo a ampliar os incentivos à imigração de trabalhadores semi-qualificados, como forma de combater o aumento do salário-mínimo, reivindicado pelas centrais sindicais…
Em contraste com as hesitações e incertezas da esquerda, Angela Merkel tem um projeto: quer achatar os custos de produção em toda a Europa, comprimindo principalmente os direitos sociais, e garantir competitividade internacional a longo prazo para as grandes empresas do continente – com clara liderança alemã. É uma aposta extremamente arriscada: para que ela triunfe, será preciso passar por cima de seis décadas de lutas e conquistas dos trabalhadores e sociedades europeias. Derrotar tamanha regressão é perfeitamente possível: a chanceler enfrenta dificuldades políticas em seu próprio país. Mas falta, para resistir, algo essencial: um projeto alternativo.
Tags: ajustes fiscais, crise financeira, Irlanda, União Européia
(Le Monde Diplomatique)

Válter Pomar

Valter Pomar: Comemorar muito, mas de sandálias
Nossa avaliação das eleições presidenciais de 2010 deve começar sempre com uma tripla comemoração e com um forte agradecimento. Comemoração pela continuidade do processo de mudanças iniciado em janeiro de 2003, pela eleição da primeira mulher presidente da República e por termos derrotado mais uma vez a direita demotucana.

por Valter Pomar*
Agradecimento ao povo de esquerda, especialmente ao povo petista, milhões de brasileiros e brasileiras, alguns anônimos, outros nem tanto, que perceberam o perigo e foram à luta, sem pedir licença, sem pedir ordem, sem pedir autorização e sem precisar de orientação.

Foi principalmente este povo que ganhou a eleição presidencial, e não governantes, candidatos, dirigentes, coordenadores ou marqueteiros.

Devemos agradecer e comemorar, mas sem descuidar de um balanço crítico e autocrítico do processo.

Este balanço deve começar lembrando que vencemos com uma bandeira: dar continuidade à mudança. Como lembrou a própria Dilma, como recebemos uma "herança bendita", nossa única alternativa é aprofundar as transformações.

Ocorre que para vencer, enfatizamos a continuidade e debatemos pouco as mudanças. O tratamento dado ao programa do Partido e ao programa do coligação é apenas mais um sintoma disto.

Debatemos pouco as mudanças, mas o cenário do governo Dilma será muito diferente do que prevaleceu entre 2003 e 2010.

Noutras palavras: a mudança na realidade já está acontecendo, embora não tenhamos debatido em profundidade as mudanças que teremos que fazer na nossa política, para enfrentar esta nova realidade.

As mudanças já se deram e continuarão ocorrendo em três níveis principais.

Internacionalmente, o cenário será dominado não apenas pela crise e instabilidade econômica, mas também por cada vez maior instabilidade política e militar.

Nacionalmente, a direita vai dar continuidade ao tom radical assumido na campanha eleitoral.

Ao contrário do que alguns pensavam, o PSDB é o partido de direita e da direita. Demonstrando uma vez mais a periculosidade da proposta da "aliança estratégica" com o PSDB, feita entre outros por Fernando Pimentel, com os resultados já conhecidos em Minas Gerais.

A terceira mudança é a seguinte: nos marcos da atual estrutura tributária e macroeconômica, não será mais possível ampliar significativamente os investimentos econômicos e sociais.

Ou reduzimos substancialmente os juros, ou fazemos algum tipo de reforma tributária, ou interrompemos o crescimento dos investimentos, ou.... Em qualquer caso, tudo aponta para a agudização do conflito redistributivo no país, seja tributário, salarial, seja pela alta nos preços, pela alta dos juros etc.

Para dar conta destas mudanças, que conformam um novo cenário, teremos que enfrentar e superar três impasses estratégicos.

Primeiro: a política de melhorar a vida dos pobres, sem tocar na riqueza dos milionários, reforça o preconceito de uma parcela dos setores médios contra nós. Pois na prática estes setores perdem, em relação aos pobres, especialmente em termos de status.

Segundo: melhorar a vida material dos pobres, sem melhorar em grau equivalente a sua cultura política, deixa uma parcela dos que melhoraram de vida sujeitos à influência das igrejas conservadoras e do Vaticano, dos meios de comunicação monopolistas e da educação tradicional.

Aqui vale ressaltar que a disputa de valores faz parte da disputa política. Não percebe isto quem acha que fazer política é "administrar", esquecendo que a "percepção das obras" é mediada pela ideologia, pela visão de mundo, pela luta política.

Terceiro: o PT ganhou sua terceira eleição presidencial, mas ao mesmo tempo enfrenta cada vez mais dificuldades para hegemonizar o processo.

Estas dificuldades ficam claras quando analisamos o papel do PT na campanha, na composição do novo governo, na relação com aliados, na relação direta e cotidiana com o povo etc.

Quais são as principais dificuldades do PT?

Primeiro, a terceirização de parte de suas atividades dirigentes, seja para a bancada, seja para o governo, seja para o Lula. Há uma crescente distância entre a influência moral e eleitoral do PT, vis a vis a capacidade efetiva de direção de nossas instâncias.

Segundo, o empobrecimento de nossa elaboração ideológica, programática e estratégica. É preocupante o descompasso cada vez maior, entre a complexidade das questões postas diante de nós, no mundo, na América Latina e no Brasil, vis a vis nossa capacide de refletir coletivamente sobre estes assuntos.

Terceiro, há um processo de "normalização" do PT, de integração ao establishment. Durante muitos anos, o PT cumpriu um papel civilizatório na política brasileira. Pouco a pouco, por diversos motivos, entre os quais o financiamento privado das campanhas eleitorais, fomos nos adaptando a certos hábitos e costumes da política brasileira, dos mais ridículos aos mais graves, entre os quais tratar a eleição como mercado de votos.

Ou reagimos a isto e voltamos a cumprir --como Partido-- um papel civilizatório, reformador e em alguma medida revolucionário nas práticas e costumes da política, ou estaremos fazendo o jogo da direita e da mídia que dia e noite nos calunia.

O que falamos antes ajuda a explicar alguns dos motivos pelos quais uma parcela importante da juventude não se identifica mais conosco. Grandes parcelas da juventude podem ser ganhas por nós, se adotarmos práticas distintas, combinadas com projeto de futuro, ideologia, visão de mundo, programa transformador. Se não fizermos isto, teremos inclusive problemas eleitorais, pois na próxima eleição e na outra, não adiantará comparar nosso governo com o passado, pois para os mais jovens, nós também fazemos parte do passado.

Aqui vale destacar que nossa integração ao establishment não se dá como decorrência automática de nossa conversão em partido de governo. Aliás, ironicamente, as vezes nossos governos são o que há de mais inovador e atraente; enquanto nossas instâncias partidárias vão se transformando em "agências reguladoras" de nossa participação nos processos eleitorais, burocratizadas, sem vida, controladas por esquemas cada vez mais tradicionais.

A quarta dificuldade que enfrentamos está em nossa relação com os aliados.

Precisamos de aliados para vencer eleições e para governar. Mas, nas atuais regras do jogo, a mesma política de alianças que parece cumprir um papel positivo na nossa vitória nacional, não parece contribuir para um salto no tamanho de nossas bancadas parlamentares e no número de nossos governos estaduais. Isto, mantidas as atuais regras do jogo, nos condena a um teto, a um limite de crescimento. E, sem maioria de esquerda no Congresso, qualquer discussão sobre reformas profundas pela via institucional será apenas isso: discussão.

A este problema, cabe agregar um detalhe: apesar de nossa política de alianças, o antipetismo cresce entre os aliados, assim como cresce na sociedade.

Em decorrência das mudanças, impasses e dificuldades que citamos antes, entendemos que a direção nacional deve priorizar o debate sobre a estratégia e a tática do Partido, da qual decorre a política que defendemos para o conjunto do governo, da qual podemos deduzir os espaços que achamos devam ser dirigidos pelo PT. E não, como parecem pretender alguns, começar e terminar o debate pelos tais "espaços".

Na nossa opinião, o Partido deve priorizar quatro temas em 2011: a reforma política, a democratização da comunicação, a reforma tributária e a reorganização do PT.

Em resumo: com a eleição e posse de Dilma, a mudança continua, mas a disputa também.

Continua a nossa disputa contra o neoliberalismo, que não está morto, como se depreende do lobby do setor financeiro em favor de Meirelles, de Palocci, do ajuste fiscal e da alta de juros, para não falar do que ocorre no G20, na Europa e nos EUA.

Continua a nossa disputa contra o desenvolvimentismo conservador, aquele no qual as empresas capitalistas crescem, sem que haja mudanças estruturais na distribuição de poder, renda e riqueza.

E continua a disputa deles contra o PT. Disputa que vamos vencer, se abandonarmos as ilusões no inimigo, a defensividade absoluta e certo medo de sustentar nossas posições históricas e corretas, por exemplo em favor da democratização da comunicação.

A disputa contra o PT é uma disputa em torno do conteúdo da mudança que está em curso no Brasil. É uma disputa de hegemonia. E disputar hegemonia não é igual a fazer concessão, não é igual a ceder ou a recuar sempre. Disputar hegemonia é o contrário disto. Disputar hegemonia é travar uma luta cotidiana e permanente em defesa dos nossos valores, da nossa visão, do nosso projeto de mundo e de Brasil.

*Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do PT
Texto baseado na intervenção feita na reunião do Diretório Nacional do PT, dia 19 de novembro de 2010

(vermelho.org)

EUA

Muito longe do equilíbrio. Artigo de José Luís Fiori


"Os EUA optaram pela resposta estratégica que combina a manipulação do valor do dólar com maior presença militar", escreve José Luís Fiori, professor titular e coordenador do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, em artigo publicado no jornal Valor, 24-11-2010.
Eis o artigo.
"Toda situação hegemônica é transitória, e mais do que isto, é autodestrutiva, porque o próprio hegemon acaba se desfazendo das regras e instituições que criou, para poder seguir se expandindo e acumulando mais poder do que seus liderados".
J.L.F. "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" Ed.Boitempo, 2007, p:31
A recente decisão americana de desvalorizar sua moeda nacional não é nova nem surpreendente. Como tampouco, a transferência dos seus custos para o resto da economia mundial, e de forma particular, para a periferia monetário-financeira do sistema. Os EUA já fizeram a mesma coisa, em 1973, quando abandonaram o sistema de Bretton Woods, provocando a primeira grande recessão mundial, depois da II Guerra. As analogias históricas são perigosas e devem ser utilizadas com cautela, mas não há dúvida que a situação e o comportamento atual dos EUA se parecem muito com o que ocorreu na década de 1970. Como naquele momento, uma vez mais os EUA estão envolvidos numa guerra sem solução e enfrentam uma grave crise econômica. E ao mesmo tempo, seu establishment está rachado e sua sociedade está atravessando uma luta política que deve se prolongar por muito tempo. E uma vez mais, os EUA optaram por uma resposta estratégica que combina a manipulação do valor do dólar com uma "escalada" da sua presença militar ao redor do mundo. E não é impossível que ainda façam um acordo estratégico com a Rússia e um acordo de paz com o Irã, envolvendo toda a Ásia Central. E que adotem, novamente, a estratégia do "dólar forte", do final dos anos 70.
Mas é óbvio que existem algumas diferenças fundamentais: por exemplo, a relação econômica dos EUA com a China é totalmente diferente da relação que os EUA tiveram com a URSS, e no século passado não havia nenhum país - nem a Comunidade Europeia - com força para contestar ou resistir às decisões da política monetária americana. Por isso, não é fácil de prever o futuro das novas iniciativas estratégicas dos EUA, mas com certeza, não é necessário que os países latino-americanos repitam os mesmos erros que conduziram à sua estagnação econômica e ao retrocesso neoliberal dos anos 80 e 90, do século passado.
O futuro está aberto e existem múltiplas alternativas sobre a mesa, mas neste momento é necessário que os governantes tenham uma visão estratégica que transcenda o debate puramente econômico, cujos argumentos e alternativas fundamentais se repetem há cerca de 200 anos. A falta dessa visão mais ampla é que explica a repetição - como na década de 70 - de algumas propostas absolutamente ingênuas ou inviáveis, dentro do sistema político-econômico mundial em que vivemos. Como é o caso, por exemplo, de decretar o fim da hegemonia do dólar ou de criar uma nova moeda supranacional, ou ainda, de estabelecer uma meta fixa e consensual para os desequilíbrios das contas correntes nacionais, ou ainda pior, de voltar ao padrão-ouro ou delegar ao FMI a função de governo monetário do mundo. Sem falar nos que acreditam que os EUA e a China possam mudar suas políticas econômicas nacionais, por conta da "pressão amiga". Propostas e expectativas que pecam pelo desconhecimento ou negação ideológica de alguns aspectos centrais da economia política da moeda dentro do sistema inter-estatal e capitalista. Assim, por exemplo:
1) Com o desconhecimento ou negação de que as moedas soberanas não são apenas um "bem público". Envolvem relações sociais e de poder entre seus emissores e os seus detentores, entre credores e devedores, entre poupadores e investidores, e assim por diante. E por trás de toda moeda e de todo sistema monetário esconde-se e se reflete sempre uma determinada equação e correlação de poder, nacional ou internacional.
2) Com o desconhecimento ou negação de que as moedas de referencia internacional não são apenas uma escolha dos mercados. São produto de uma longa luta de conquista e dominação de territórios supranacionais e um instrumento estratégico de poder dos seus estados emissores e dos seus capitais financeiros.
3) Com o desconhecimento ou negação de que nesse sistema interestatal, a contradição implícita no uso de moedas nacionais como referencia internacional, é uma contradição co-constitutiva e inseparável do próprio sistema. A moeda pode até mudar, mas a regra seguirá sendo a mesma, com o Yuan, o Yen, o Euro, ou o Real, dá no mesmo.
4) Por fim, com o desconhecimento ou a negação de que faz parte do poder do emissor da "moeda internacional", transferir os custos de seus ajustes internos para o resto da economia mundial e, em particular para sua periferia monetário-financeira. Cabendo aos seus governantes a escolha de suas respostas soberanas.
Não é fácil de pensar um sistema onde não existe nenhuma possibilidade de equilíbrio estável. Mas um estadista não pode desconhecer que dentro do "sistema interestatal capitalista", jamais haverá equilíbrio econômico estável, ou coordenação política permanente.
(Inst. Humanitas Unisinos)

Portugal

Greve pode revelar um Portugal menos europeu
By
Antonio Martins
– 22/11/2010
Share

No Velho Continente, ataque aos direitos continua: agora a vítima é a Irlanda
Pode ser a maior “greve geral de sempre”, segundo os próprios jornais conservadores. Nesta quarta-feira, 24/11, milhões de trabalhadores portugueses deverão cruzar os braços, atendendo a convocação da Central Geral de Trabalhadores do país, a CGTP. Eles protestam contra um “plano de austeridade” — a resposta do governo (dirigido pelo primeiro-ministro José Socrates, do Partido Socialista) à segunda onda da crise financeira mundial aberta em 2008.
O peso econômico de Portugal é reduzido, mas a importância política da greve, não. Da União Europeia (UE) têm surgido as piores reações contra a crise. Liderados pela primeira-ministra alemã, Angela Merkel, todos os governos do bloco que enfrentam dificuldades financeiras têm procurado reduzir despesas atacando direitos sociais (veja nossa reportagem a respeito). A atitude destoa tanto das políticas adotadas nos países do Sul (China, Índia e Brasil principalmente) quanto da postura híbrida pela qual optaram os Estados Unidos.
Na UE, eleva-se a idade mínima para aposentadorias, congela-se — ou mesmo rebaixa-se salários, elimina-se benefícios sociais. Exceto no caso da própria Alemanha, que se beneficia de uma poderosa máquina exportadora, as medidas não têm produzido resultados sequer em termos macroeconômicos. Mas estão em sintonia com uma regressão social e política mais profunda e preocupante, que inclui o crescimento dos partidos de extrema-direita e a desorientação generalizada da esquerda.
Há resistência — como indicaram as jornadas de mobilização de setembro. Em países como a França, a ampla maioria da opinião pública rejeita as contra-reformas, segundo múltiplas sondagens (e haverá nova jornada de protestos amanhã, 23/11). Porém, como falta um programa alternativo, a luta patina. E vão se multiplicando os planos de “ajuste estrutural” com redução de direitos, como o que a Irlanda comprometeu-se a adotar neste domingo (21/11)
Em Portugal, há sinais de algo novo. Estima-se que greve geral deverá paralisar cerca de metade dos trabalhadores. Além disso, estão surgindo, entre a esquerda institucional (Partido Comunista, Verdes e Bloco de Esquerda ocupam juntos cerca de 20% das cadeiras, no Parlamento), novidades animadoras. Ao invés de simplesmente combater os cortes de direitos, o Bloco de Esquerda, por exemplo, acaba de apresentar uma proposta detalhada de alternativa contra a crise.
Ela reconhece as dificuldades financeiras, mas sugere, para dissipá-las, um conjunto de 15 medidas de sentido oposto ao (mal)-chamado Plano de Estabilização e Crescimento (PEC), que o governo e a UE procuram implementar. Ao invés de privatizar empresas e reduzir direitos como a Renda da Cidadania, a proposta fala, por exemplo, em adotar um Imposto Único sobre o Patrimônio, que incidiria sobre a riqueza superior a 2 milhões de euros. Explora brechas importantes na legislação fiscal: sugere que os bancos deixem de gozar de privilégios e passem a contribuir com a Receita como as demais empresas: com 25% sobre os lucros, ao invés dos atuais 5%. Inclui instrumentos bastante avançados: tributar a “mais-valia urbana”, a valorização obtida pelos proprietários de imóveis graças aos invetimentos de infra-estrutura feitos pelo Estado. Questiona inconsistências fiscais enraizadas (inclusive no Brasil…). Sugere que o Estado deixe de conceder descontos de impostos aos usuários de planos de saúde privados — e destine as rendas suplementares ao financiamento do sistema público.
Disponível na última edição de Esquerda, o jornal produzido pelo Bloco (que também mantém um site rico e sempre atualizado), o programa alternativo abre uma trilha que tem sido pouco explorada pela esquerda europeia. Não se trata nem de formular um projeto revolucionário (algo totalmente fora de lugar, no ambiente europeu atual), nem de buscar o “mal menor” (aceitando, com pequenas modificações, o corte de direitos proposto pela União Europeia). Há espaço para reconhecer a crise (estabelecendo sintonia com os receios da opinião pública) e propor uma saída radicalmente distinta da usual. Provavalmente, a mesma criatividade que permitiu ao Bloco de Esquerda enxergar tal brecha, tornou-lhe possível imaginar formas criativas de mobilização em favor da greve geral, como a que ilustra este post.
Tags: ajustes fiscais, crise do capitalismo, crise financeira, Portugal, União Européia
(Le Monde Diplomatique)

Quintana

Eu fiz um poema

Eu fiz um poema belo
e alto
como um girassol de Van Gogh
como um copo de chope sobre o mármore
de um bar
que um raio de sol atravessa
eu fiz um poema belo como um vitral
claro como um adro...
Agora
não sei que chuva o escorreu
suas palavras estão apagadas
alheias uma à outra como as palavra de um dicionário.
Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de uma cidade morta.
O vulto de um velho arquéologo curvado sobre a terra...
Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?

Mario Quintana
(1906-1994)
(Poemblog)

EUA

Estados Desunidos da América?
By
Antonio Martins
– 22/11/2010
3Share
Novo censo revela país menos rico e mais polarizado — social e politicamente
Na década de 1990, a fulgurante riqueza dos Estados Unidos contrastava com uma Europa estagnada, uma América Latina incapaz de superar suas crises e uma Ásia emergente, mas ainda muito débil no cenário internacional. Muitas análises viam como inevitável um “novo século americano” — ou seja, a extensão duradoura da hegemonia internacional de Washington.
Quanta coisa mudou, em pouco tempo. Além de enfrentarem claras dificuldades para pautar a agenda global, os EUA são afetados por dores internas crescentes, segundo revelam os primeiros dados do censo populacional de 2010, comentados na edição desta semana da revista Economist. A população está mais pobre, as desigualdades avançam e a polarização social e política tende a dificultar as solução de questões nacionais relevantes.
Segundo os dados preliminares do recenseamento, a renda média das famílias caiu expressivos 7%, entre 2000 e 2009. Além disso, a queda foi desuniforme, afligindo mais intensamente as antigas regiões industriais. No Estado de Michigan, que já foi a meca da indústria automobilística, ela declinou 21,3%; em Indiana, Ohio e Carolina do Norte, entre 13% e 15%. Em cinco Estados a renda média cresceu (Wyoming, Dakota do Norte, Maryland, Louisiana e Alaska). Em quatro deles, o avanço deveu-se ao aumento das cotações de matérias-primas, um fenômeno que pode ser passageiro.
A população ainda é relativamente jovem, se comparada com outras nações ricas, mas está havendo polarização também quanto à faixa etária. Os Estados do Nordeste e do Meio-Oeste — os mais prósperos até há algumas décadas — estão encolhendo populacionalmente, e envelhecendo com rapidez. Um número expressivo de famílias jovens migra rumo ao Oeste, em busca de mais empregos e preços mais baixos (especialmente de imóveis).
O censo revela a força da imigração. O número de residentes nascidos em outros países cresceu 24%, na década. Etnicamente, os hispânicos (aqui incluídos os nascidos nos EUA) já são 21% da população com menos de 25 anos (são apenas 7%, entre os maiores de 65). Em alguns Estados, a população hispânica jovem é quase majoritária. No Arizona, chega a 42%. Mas em muitas partes, a sociedade não tem sido capaz de lidar com tal diversidade: o próprio Arizona adotou, este ano, leis antiimigrantes claramente racistas, que despertaram protestos internacionais e estão sendo questionadas pelo governo central.
Há alguns anos, os sinais de diferenciação entre a sociedade já haviam sido estudados pelo jornalista Bill Bishop. Em uma série de reportagens depois transformadas em livro (The Big Sort, algo como A grande segmentação), ele revelou que, embora vivam num país extremamente diverso, os norte-americanos tendem a formar comunidades cada vez mais homogêneas entre si — porém muito distintas e pouco abertas umas às outras. Resenhas e parte do livro estão disponíveis na internet (em inglês).
Bishop revela que tal segmentação envolve tanto estilos de vida quanto escolhas políticas. Nas eleições presidenciais de 1972, apenas 28% dos norte-americanos viviam em condados onde a diferença de votos entre os candidatos democrata e republicano foi superior a 20 pontos percentuais. Em 2008, 48% dos eleitores já estavam em localidades com tal grau de polarização.
Esta tendência irá se refletir no Congresso recém-eleito, que toma posse em janeiro. Segundo um estudo do cientista política Keith Poole, da Universidade da Califórnia, sua composição será a mais polarizada desde 1865, quando terminou a Guerra de Secessão. Entre os republicanos, é marcante a influência do movimento ultraconservador Tea Party. Na bancada democrata tem peso inédito a ala mais à esquerda.
The Economist lamenta: os EUA estão diante de problemas graves. “Divergências crescentes não vão tornar nada fácil chegar a acordos sobre como resolvê-los”, diz a revista.
(Le Monde Diplomatique)

Che

Che pedagogo
Augusto César Petta *

Fui a Cuba, pela primeira vez, em 1997, juntamente com outros companheiros e companheiras do movimento sindical brasileiro. Naquele momento, os cubanos passavam pelo que denominavam de “período especial”. Além da continuidade do violento bloqueio econômico imposto pelas elites estadunidenses, havia acontecido a queda da experiência socialista na União Soviética. E, claro, como decorrência, o afastamento das relações econômicas da Rússia com Cuba, o que afetava significativamente a qualidade de vida do povo cubano.

Em novembro de 2010, voltei, juntamente com o Secretário-Adjunto de Relações Internacionais da CTB João Batista Lemos, para participar de uma reunião de Centrais Sindicais componentes do Encontro Sindical Nossa América – ESNA e de Centros de Formação Sindical e de Investigação, com o objetivo de definir um programa de formação e investigação na América. Em outro artigo que irei escrever, pretendo transmitir aos leitores, as decisões tomadas na reunião e que se constituem no programa de atividades a serem desenvolvidas.

Nessa viagem, tive contato com um livro denominado “Del pensamiento pedagógico de Ernesto Che Guevara”, escrito pela professora cubana Lidia Turner Martí, doutora em Ciências Pedagógicas, Filosofia e Letras. Acostumado com a observação de que Che foi um grande revolucionário, despojado, capaz de dar sua própria vida para contribuir na luta pela libertação dos povos, não me ocorria que pudesse ter qualidades tais, que permitissem contribuir, de forma significativa, para a pedagogia cubana. Lídia Marti afirma que “o estudo e análise da obra de Che nos leva a afirmar que fez aportes notáveis à pedagogia cubana..... Suas idéias, colocadas em discursos, ensaios, cartas, e até nos diários de campanha, encerram profundas análises da essência do homem, dos métodos para sua formação e da relação estreita entre educação e desenvolvimento econômico e social”. O próprio autor do prólogo do livro, Justo A.C. Rodriguez, confessa que mesmo sendo um leitor entusiasta da obra de Che, não havia reparado na direção pedagógica do seu pensamento.

Para Che é importante que haja uma correspondência entre personalidade individual e pessoa pública, estabelecendo-se uma relação dialética entre o individual e o social. É nessa unidade dialética que se situam as bases para as idéias de Che sobre educação e sobre a formação do homem novo.

Lídia Martí destaca dois elementos que considera fundamentais na obra de Che: a formação de qualidades e valores no homem que constrói uma nova sociedade e a consideração da Pedagogia como uma ciência necessária no processo cubano.

Guevara disse que precisamos formar a juventude, principalmente com as seguintes qualidades: sensibilidade diante dos problemas humanos, amor ao estudo, modéstia, simplicidade, solidariedade, inconformidade diante do mal-feito, intransigência diante da injustiça e do formalismo. Afirma que “neste processo de construção do socialismo podemos ver o homem novo que vai nascendo. Sua imagem não está, todavia, acabada; não poderia estar nunca, já que o processo marcha paralelo ao desenvolvimento das forças econômicas novas...”. Para Che, o coletivismo – que se desenvolve no trabalho grupal - deve ser uma qualidade importantíssima na construção da personalidade do homem socialista. Nesse sentido, ele se opõe ao individualismo que chega a ser exacerbado nas sociedades capitalistas. Nelas, principalmente nas classes dominantes, prevalecem valores opostos aos que Che defende para o novo homem socialista.

Com a prevalência dos valores socialistas, Che sintetiza sua preocupação pedagógica: “A sociedade em seu conjunto deve converter-se numa grande escola”.

Nessa segunda viagem a Cuba, 13 anos depois da primeira, pude verificar que os valores para um novo tipo de ser humano - solidário e inconformado diante das injustiças - continuam sendo construídos pelo povo cubano.


* Professor, sociólogo, Coordenador Técnico do Centro de Estudos Sindicais (CES), membro da Comissão Sindical Nacional do PCdoB, ex- Presidente do SINPRO-Campinas e região, ex-Presidente da CONTEE.
(vermelho.org)

Jabor, q já foi de esquerda!

A Suprema felicidade:
Jabor e seu adágio
cinematográfico
.
Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro


Duro é sentir que a única poesia que se consegue tirar hoje em dia é a da miséria política, da violência, da pobreza, da miséria espiritual do ser humano reduzido a farrapos.

“Conscientes de estarmos destinados a perder nossos amores, nós somos melancólicos talvez ainda mais por percebermos no amante a sombra de um objeto amado outrora perdido.”
Julia Kristeva

Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Digamos que o cinema é um sistema aberto de linguagens tensionadas por um saber profundo, ou não. Entre nós foi sempre uma utopia sem gozo, pois temos todo um mercado ocupado militarmente por Hollywood. Defendido pela mídia e por um modelo vazio de poder, apenas reprodutor da lógica da manutenção do status quo. Bem, preencher a ludicidade da nossa má formação afetiva, política e cultural é complicado porque um buraco negro aparece na vida de todos nós, uma espécie de labirinto vazio, onde a concretude passa a ser o não-ser para a vida, numa construção complexa de contradições diferenciadas para cada indivíduo.

O resgate familiar é sempre mais complicado. Todo o processo de assimilação passa por choques, encantamentos e voyeurismos. Jabor, neste sua A Suprema Felicidade, é menos obsessivo criativamente que no seu genial Tudo Bem, para nós a sua obra-prima. Aqui a experiência é menos totalizante, e passa por uma espécie de nostalgia feliz como substância da sua formação. Ou talvez, a formação de todos nós, com o passado sendo ultrapassado por um presente sem singularidade alguma. Faz um filme de transição pós-vanguarda e pós Fellini, a quem o trabalho poderia ser dedicado. Jabor tenta traduzir tempos distantes e esquecimentos simbólicos. Ênfase na presença do avô (não muito bem interpretado por Nanini), e a descoberta do sexo que tem suas raízes na sua própria mãe.

Jabor não esconde sua constelação de desejos no redimensionamento das nossas primeiras utopias: o Brasil! Sempre sonhando como uma esperança que nunca chegou, e subestimado por partidos, políticos e pensadores de plantão. Basta ver a abstenção do primeiro e segundo turno da eleição de dona Dilma e do Zé Ruela do PSDB. A nossa própria política tornou-se asfixiante, bolorenta e vazia de um sentido mais humano. Virou um espetáculo de bufões melancólicos numa espécie de Fla X Flu simbólico. Talvez essa volta de Jabor ao passado seja uma forma de superação das tantas e tantas grosserias desse nosso tempo, em que o populismo afirmativo banalizou todo e qualquer sentido de uma arte mais profunda baseada no humano e no saber.

Não mostra também a solenização dos seus filmes com Nelson Rodrigues, mas traz à tona encontros, momentos, passagens, desafios e desencantos numa reconstrução da sua própria caminhada, ao modular articulações ora alegres, ora melancólicas sem fetichizar nada. Nem mesmo o ideário burguês que foi seguido pela sociedade brasileira depois dos anos 40 e 50. A Suprema Felicidade é um jogo de encenações do cotidiano enquanto rito de vida. É como diz o avô ao seu pequeno neto: “ –A vida só gosta de quem gosta dela.” Jabor teatraliza o tempo na sua historicização kitsch da família docemente frágil onde a mãe-mulher não podia ter desejos próprios. Como o seu desejo de ser mais útil e trabalhar.

A Suprema Felicidade é quase uma volta afetuosa ao seu delicado Opinião Pública, onde o possível uso da melancolia termina na psicanálise sem moralismos ou panfletos fáceis. Talvez seja um filme comum e até menor. Nem por isso menos sensível. Ainda assim, bem melhor que essa glamourização grotesca da violência cuja encenação nos remete ao fascismo, tão vivo e tão desejado entre nós. Mas claro que ninguém vai se dizer fascista , pois se esconde bem em todos os partidos políticos (de uma extremidade a outra) com o eterno argumento salvacionista de fetichização do povo (desistoricizado e santificado por uma infinidade de velhos chavões populistas). E mais, o ideário de todos os partidos é sempre que possível enraizar uma concentração de fachadas mediocrizantes onde todos vão gozar sem prazer algum.

Há momentos em que é preciso outro movimento no tempo. O do novo filme de Arnaldo Jabor é este adágio, sob esse ruído louco que tudo emudece. Ruído insuportável de apagamento da história. Da memória e do enterro dos mitos de origem, cuja vida é a significação de nossa própria existência, em relação de reinversões e confrontos com a própria realidade, onde deveria estar o conhecimento como presença, aproximação e solidariedade no tempo; coisa simultânea e invariável de nossos movimentos.

Mas, não. Neste concreto que vivemos, tudo cessa. Menos as musas cujos mistérios e encantos vão se tornando inacessíveis. O que Jabor toca. E o que sua crônica leve, singela e dolorida de 24 de outubro sobre seu filme, nos faz lembrar. Diz lá que nosso cinema vai ficando menor e onde reina o silêncio. No máximo um tiroteio vindo de oráculos, pela força de reverberações e ricochetes, emanações de um poder tirânico e indevassável.

Na onda do Jabor e no movimento em surdina de seu adágio, é bom lembrar que desapareceu o Estúdio Herbert Richers, simultaneamente à morte do chefe. Sempre de portas abertas, e onde muitos de nós demos os primeiros passos no sonho, na arquitetura artística e lúdica de um cenário e no processo que as exigências do progresso nos encaminhava pela maquinaria. Herbert Richers era o cinema possível: industrial, profissional e experimental, como foi o Vidas Secas, produzido por ele e dirigido por Nelson Pereira dos Santos.

Corajoso nos investimentos e no que as telas nos projetavam. Também foi morrendo aos poucos. E enfrentar o ruído desigual do cinema tem sido para poucos. Mas Jabor soube fazer o seu apelo bem direcionado. O nosso público é fiel e generoso. Sabe desejar, e o desejo não morre quando o filme vem bem direcionado, como este em questão. Uma cabeça cinematográfica de portabilidade conhecida e definida. De tempo e história que alargam o espaço da tela! Sabemos que o tempo não está para nós, e vale até um retorno nela para mais algumas avaliações e para aqueles que já perderam ou perderam a memória. Um regresso à traumática era Collor. Quando a nossa luta pelo cinema parecia mais solidária e as muitas diferenças entre nós eram mais respeitadas. O que nunca negamos, mas que os poucos recursos e a política elitista de sempre iam maltratando.

Desde a era Collor, a da ruína, a força de partidos entre nós já estava em queda. O governo Collor e o que ele representou em sua rápida e nefasta passagem pelo poder, foi um desastre para o cinema. E hoje? Infelizmente é tempo de calar! Misterioso é o silêncio. Como esse adágio de Jabor! Mas, em relação ao tempo, estamos inseridos num processo do que restou de concreto, por razões que a boa razão não desconhece.

O cinema tem se alargado deixando-nos um buraco negro, mesmo quando os segredos da esfinge ameaçam ser desvendados. O tempo já foi o de Marlboro e de tantos signos isolados de um mesmo capital que se monopolizou e se tornou o controle absoluto dos meios de produção de imagens e do imaginário. Não é Jabor?

Mas o seu filme está aí. E nós com ele. Visto que deve ser visto, como uma reinversão ou uma reinvenção do outro. Ver o outro no sentido de uma metonímia, um pouco distante da metáfora, deste sentir o outro. Porque o tempo não perdoa, vai fazendo esquecer, fazendo fugir o ato do que conhecemos. Muito oportuna esta sua reinvenção de si mesmo, como uma re-escritura do próprio tempo e de como você o sente e o sentia. E, para todos nós, muita coisa de bom para a crítica de nosso cinema neste adágio cinematográfico. Uma idéia de Jabor. Uma idéia de algum Brasil esquecido ou perdido no tempo.

Para concluir, A Suprema Felicidade é parte de todos nós. Divididos, cindidos, irados, brigando com Deus e o Diabo. É um retrato do mundo ou do que fizeram com todos. Não poderia ter sido diferente? A realidade é essa sem sonhos ou utopias. Ficamos apenas com as feridas. E da dor os personagens retiram o seu saber. É preciso cuidado para não confundir e misturar. Saber diferenciar o joio do trigo. Hoje, fazer espetáculo da violência e da miséria virou plataforma para publicitários culpados e eruditos no cinema contemporâneo, em especial no Brasil. Mas neste A Suprema Felicidade há muito valor, que seja a convivência do autor com suas personagens que transparecem no filme. Ora, para filmar os ambientes da forma que Jabor filmou, para obter a intimidade de suas personagens que captou tão docemente, é necessário ir aos locais para impregnar-se daquele cheiro e daquelas almas.

Duro é sentir que a única poesia que se consegue tirar hoje em dia é a da miséria política, da violência, da pobreza, da miséria espiritual do ser humano reduzido a farrapos. Talvez seja essa a condição dessa época triste sem sonhos ou utopias. Lembram-se de Deus e o Diabo na Terra do Sol? Mesmo de Os Fuzis? Ali também havia miséria, mas havia uma crença, um sentido e sentimento de fé, um entusiasmo e uma grandeza poética que, hoje, está difícil de conseguir. Quando muito é pelo filtro do que vem do real, do documentário. Porque a ficção (o imaginário)... esse é inadiplente, anêmico, fraco de uma indigência estética que enoja. Talvez esse adágio de Arnaldo Jabor possa lhes dizer alguma coisa.

13/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Mais sobre Luiz Rosemberg Filho

rosemba1@gmail.com

Veja, em ViaPolítica, dois recentes curtas metragens de Luiz Rosemberg Filho:
O discurso das imagens
Sem Título

Mais sobre Sindoval Aguiar
(Com muitas reservas a figura do Jabor-rede globo)

Pensamentando

A morte dos maus
• Análise
No país do futebol, o estado de exceção e a política do terror urbano



26/11/2010



Jaime Amparo-Alves


Quando a bola começar a rolar na Copa do Mundo em 2014, aqui no Brasil, os atletas talvez não imaginem o rastro de sangue necessário para fazer do evento uma realidade possível. A violência terá sido, então, sanitarizada com o verde-amarelo e a estética do horror já terá sido varrida para os cemitérios. Debaixo da terra nem a putrefação dos cadáveres negros que pavimentaram o caminho para o Brasil colocar a sexta estrela na camisa canarinho. Hexa!

Não é exagero: a reestruturação urbana das metrópoles brasileiras requer a remoção em massa tanto das residências quanto dos corpos negros. Em São Paulo o processo já segue a passos largos. A região central da cidade deve ser o foco de uma política de intervenção higienista estratégica nos próximos anos. Sob a justificativa do combate ao tráfico, já se desenha para ali o estrangulamento do que restou do viver urbano das famílias pobres no centro velho.

Ainda na cidade, se tornam cada vez mais comuns os incêndios inexplicáveis de favelas em áreas estratégicas para investimentos imobiliários. Os incêndios, na verdade, ‘surgem’ como saída providencial para o poder público, para o chamado terceiro setor e para o mercado. Enquanto os primeiros precisam apenas gerenciar a assistência, ao último se abre uma nova fronteira de acumulação/especulação imobiliária. Na hiper-periferia paulistana, por sua vez, a PM paulista já celebra, quatro anos antes dos jogos esportivos, o recorde absoluto no número de blitz e prisões.

No Rio de Janeiro, terra dos capítulos da tragédia estatal, o caveirão faz parte, há tempos, da geografia racializada da cidade (assim como o Blaser da Rota se confunde com o cinza da tragédia urbana paulistana). Os mais recentes ‘confrontos’ são apenas um ensaio do que vem por aí nos anos que precedem os dois megaeventos esportivos. Como demonstrado na filosofia dos ‘choques de ordem’ da prefeitura do Rio, é preciso pavimentar o caminho para garantir a circulação do capital e das ‘pessoas de bem’ na Cidade Maravilhosa.

A duras penas aprendemos que o espaço urbano é uma categoria política que ambienta modos de dominação. É nele que se materializam as concepções que temos de raça, de classe, de região de origem. Neste sentido, os malvados, os perversos, os sujos habitam regiões que precisam ser extirpadas para evitar a metástase. No que diz respeito à circulação do capital, é imperativo que o Estado penal seja levado à sua potencia máxima (na equação prisão e morte) e o pouco que resta de políticas sociais seja distribuído nem mais nem menos do que o necessário para garantir a conformidade com a ordem. Não por acaso as UPPs (RJ) e as Polícias Comunitárias (SP) coexistem com o assistencialismo estatal e as estratégias pedagógicas de cidadania do onguismo. Afinal, é preciso manter o Haiti (de ontem ou de hoje) longe daqui.

Embora a nova ordem urbanística que vem por aí apenas reatualize os já conhecidos padrões de terror estatal - o massacre do corpo negro nas favelas como condição imprescindível para a paz social -, ela em certa medida também inaugura uma nova economia da violência que tem no espetáculo esportivo sua razão de ser. Foi assim na África do Sul, e será assim no Brasil.

Como justificar a morte de jovens negros, o encarceramento em massa, a remoção de comunidades inteiras senão pela lógica da purificação total? Essa coisa chamada ‘sociedade civil’ precisa - e a retórica da guerra fartamente disseminada pelo jornalismo criminoso sustenta - que alguns grupos sejam sacrificados em nome da nação verde-amarela.

O paradoxo aqui, como nos lembra o filósofo italiano Giorgio Agamben (1942) é que ser sacrificado não é um privilégio para qualquer um. Como no sacrifício bíblico de Isaac, o valor do ritual está na preciosidade (humanidade) do ser sacrificado. No caso dos jovens negros, encurralados entre a prisão e o cemitério, a morte se transformou em um evento ordinário, parte do viver urbano. Aqui, a retórica dos ‘direitos humanos’, da ‘democracia’ e do ‘estado de direitos’ não faz sentido porque, como o jornalismo criminoso nos lembra diariamente, os ‘maus’ têm que morrer. É por isso que a histeria intelectual-academicista-onguista segundo a qual o estado de direitos estaria ameaçado (pelo estado de exceção) só faz sentido se tomado sob a ótica daqueles grupos sociais vistos como portadores de direitos. Para os não-cidadãos, os ‘maus’, até mesmo o conceito de estado de exceção, proposto por Agamben, precisa de um reparo, uma vez que esta tem sido a norma sob as quais (sobre)vivem. Aqui está: estado de exceção permanente!

A Copa 2014 e as Olimpíadas de 2016 serão eventos espetaculares, o país receberá enxurradas de dólares e as metrópoles brasileiras terão finalmente sido sanitarizadas. Pessimismo? Vem aí a paz dos cemitérios! Está inaugurada uma nova etapa na biopolítica racial brasileira!


Jaime Amparo-Alves é jornalista e antropólogo. Doutorando em Antropologia Social, Universidade do Texas, em Austin amparoalves@gmail.com
(Brasil de Fato)

Paulo Francis

Meu amigo Paulo Francis
Lúcia Guimarães





+ de 2400 Acessos
+ 2 Comentário(s)
Tweet

Ele morreu na manhã do dia 4 de fevereiro de 1997, horas depois de exibir sintomas óbvios de infarto. Freqüentava um médico barato na capital americana da medicina. Caiu em casa, a um quarteirão de onde trabalhávamos da produção do Manhattan Connection.

Lembro daquela manhã em câmera lenta ― incredulidade misturada a gestos práticos, como manter segredo sobre o número do apartamento onde sua mulher Sonia Nolasco aguardava em choque a chegada do rabecão em companhia de Lucas Mendes. Um repórter ligou para a minha casa e tentou enganar minha filha para obter a informação.

Onze anos depois, ao passar pelo Brasil para comemorar os 15 anos do programa que existe graças, em parte, à estrela do Francis, sinto um certo descompasso entre o jornalista que se tornou meu amigo ao longo de anos de convívio diário e um fenômeno que, se não inventamos, emerge entre nós com uma freqüência triste. É a necrofilia de canivete suíço ― a memória dos mortos apropriada por sua múltipla utilidade. O Francis é um defunto conveniente, por mais de um motivo.

Sua coragem intelectual era baseada em décadas de experiência e pensamento crítico. Ele era produto de um Brasil hoje difícil de imaginar ― mais exatamente um Rio de Janeiro gentil e cosmopolita, onde o humor, a Bossa Nova, os escritores e a paisagem compunham um tableau irresistível. Depois de 23 anos de exílio voluntário, um dos meus prazeres secretos é ouvir a música do português falado por cariocas letrados com mais de 60 anos. Nenhum gerúndio idiota, o ritmo ondulante, os erres e esses macios mas não massacrados pelo surfês.

O ex-trotskista que, antes de morrer, tomou ódio de Fernando Henrique Cardoso numa guinada para a direita que, no final, parecia mais operática do que analítica, enfrentaria uma cobrança pós-11 de setembro. Como seria a coluna do Francis no quinto aniversário da brancaleônica invasão do Iraque? Como ele reagiria à ignorância analfabeta de George W.? Sofreria de cegueira ideológica ou, como seu recém falecido objeto de admiração e porta-voz conservador William Buckley Jr, escreveria sobre a estupidez criminosa que marcou a invasão?

Por pertencer a uma geração menos exposta ao comercialismo crasso travestido de maturidade empresarial, Francis foi poupado de rapazes imberbes com MBA's. Ele se consolidou como comentarista de TV numa época em que o então diretor da Central Globo de Jornalismo, Armando Nogueira, cujo crédito pela manutenção do comentarista no ar não é devidamente atribuído, o protegia da ira de seus inimigos com acesso a Roberto Marinho.

Fazemos um desfavor ao Francis quando o consideramos em termos absolutos e projetamos nele a carência por um pater famílias editorial. Toda a reação por e-mail à morte do Francis dirigida ao Manhattan Connection bateu primeiro no meu computador. Só o 11 de setembro entupiu mais a minha caixa de correio eletrônico. O volume era de tal ordem que concluí serem os missivistas não apenas espectadores ou leitores com preocupações sobre o fim da guerra fria ou um eventual impeachment de Bill Clinton. Inúmeras cartas expressavam um sentimento de orfandade, até entre pessoas que discordariam da maioria das opiniões políticas emitidas em suas colunas. É natural que a televisão desperte este tipo de reação. O clichê do desconhecido que se torna uma figura familiar por entrar na sua sala de visitas pode ser facilmente aplicado aqui.

Mas, no caso do Francis, o luto antecipava a realidade. Afinal, depois que ele nos deixou, o colunismo se tornou epidêmico na imprensa onde o modelo de negócio fez encolher os jornais e a opinião custa mais barato do que a reportagem.

A originalidade representada pelo Francis ― um intelectual que engaja o leitor mesmo quando expressa opiniões difíceis de sustentar ― foi substituída pelo que um observador brilhante definiu como o novo colunista: uma atitude em busca de oportunidade. Ou, como disse o editor Paulo Roberto Pires, ao evocar outras tradições da polêmica brasileira, o dardo que se promove à custa do alvo.

Francis era capaz de fazer generalizações truculentas sobre seus inimigos ideológicos ou estéticos. Não devemos esquecer que ele era um esteta e um iconoclasta. Podia irromper numa ária em meio a uma discussão sobre a queda da bolsa ou derreter-se ao descrever uma pintura de Pierre Bonnard. Ele era independente o bastante para voltar atrás e não transformava seu eventual extremismo num pacote marquetável. Eu o vi ser cordial e até carinhoso com pessoas que teria destruído por escrito.

"Ele era um conservacionista, não um simples conservador," corrige Sérgio Augusto, o jornalista cultural e colaborador do Estado de São Paulo. "Fui apresentado a ele pelo José Lino Grünewald, em meados dos anos 60 em frente ao cinema Vitória, na Rua Senador Dantas, um dos movie palaces do Rio de Janeiro", lembra o jornalista, que recebeu de Millôr Fernandes o merecido apelido de Sérgio Augoogle. "West Side Story foi lançado naquele cinema." Sérgio destaca a generosidade do Francis a quem deve dois empurrões que marcaram sua carreira ― os empregos no finado Pasquim e na Folha de São Paulo, de onde saiu, em 1996. Na ocasião, Francis lamentou a perda de Sérgio Augusto com uma frase que cada vez mais serve como mantra: acabou o asfalto.

Sérgio argumenta que o ex-colega defendia os cânones e seu amor à arte aplacava as incongruências políticas. E nota a ironia ― um dos mais famosos jornalistas da história da imprensa brasileira não era um estilista.

Várias vezes eu o testemunhei perplexa ditando o texto por telefone sem hesitação, seu leitor mal sabia que fazia o papel do psicanalista silencioso diante daquela copiosa associação livre. "Francis dizia que escrevia em alemão mal traduzido", conta Sérgio Augusto, divertindo-se com memórias de seu notório desprezo por checar fatos. "Quando a Ava Gardner morreu, Francis escreveu que ela havia se casado com um baterista débil mental. Ele confundiu Artie Shaw, o marido com o Gene Kruppa. Shaw era tão culto que a Ava se sentia obrigada a ler para acompanhá-lo."

Sei que o Francis vai ser lembrado por doses de misoginia. Mas, como trabalhei com ele todas as manhãs, de 1985 a 1990, no antigo escritório da Globo na Terceira Avenida, há que jogar luz sobre as outras faces. Conheci o colega mais velho que me puxou de lado, nos meus 28 anos, e fez um diagnóstico solidário dos desafios no casamento, na maternidade e na profissão que poucas amigas feministas teriam articulado então. Ele exibia um prazer genuíno e não angústia de castração ao ser apresentado a uma mulher inteligente. Adorava humor traquinas. Tinha uma dificuldade lendária de enfrentar manhãs e, como chegava ao escritório entre nove e meia e dez horas, acabava de acordar na pequena redação. Ao vê-lo entrar no escritório com um restinho de pasta de dentes no canto da boca e um ar ainda confuso, perguntando "O que está acontecendo?", eu o divertia com a provocação: a sua pergunta se refere ao mundo ou à minha vida sexual? "Primeiro a sua vida sexual, é claro!", ele exclamava.

Por que passamos tanto tempo falando de Paulo Francis, independente de termos desfrutado de sua companhia ou acompanhado sua trajetória com atenção?

A celebridade se tornou a perversa referência moral, existencial e política. Francis tinha se tornado personagem, como lembra Sérgio Augusto, ao citar o episódio do espectador que assistia ao Jornal da Globo num monitor da estação de trens e exclamou: "Este Chico Anysio é muito engraçado!" Mas havia substância por trás da fama.

Hoje Oprah Winfrey investe-se de autoridade para, ao mesmo tempo, combater a pobreza na África do Sul, discutir sexo entre adolescentes e encenar a humilhação pública nacional de um memorialista best-seller que fabricou fatos. Vivemos num lodaçal de platitudes servidas a consumidores da auto-ajuda.

Paulo Francis era um brasileiro germânico que jamais faltava ao trabalho, gravava seus segmentos quantas vezes fosse necessário. Tinha uma visão meritocrática e francamente elitista do mundo, enquanto mastigava um sanduíche letal em conversa animada com o motorista da Globo. Esta visão era mais generosa do que o pseudo-igualitarismo que grassa em tantos pastos da mídia contemporânea. O que diria Paulo Francis de tantos blogs, com fotos de gatinhos de estimação e recordações de viagens entediantes?

O populismo conservador, imagino, teria sido indigesto para o "Francês", como o chamava Paschoal Carlos Magno, responsável pelo apelido que nos poupou de enrolar a língua com o longo Franz Paul Trannim da Matta Heilborn.

Ao abrir o New York Times, numa manhã fria de março, e descobrir que Rupert Murdoch decidiu desfigurar a tradicional primeira página de um de seus diários favoritos, o Wall Street Journal, Francis teria se apegado como um oportunista ao conservadorismo de Murdoch? Ou teria esbravejado contra mais uma referência cultural destruída?

O mundo, segundo Rupert Murdoch, de programas como American Idol e America's Most Wanted seria tóxico para a constituição de Paulo Francis que proclamava, no ar, ao assistir a variados segmentos de cultura popular: "Estou tecnicamente morto!" Era seu grito de guerra, ou melhor, de frustração com a mediocridade, hoje fartamente representada pelo anti-intelectualismo conservador.

Paulo Francis não deixou herdeiros, e a idéia de que qualquer pessoa o substituiria, seja na reunião de condomínio ou em qualquer mídia, o faria explodir em palavrões. Ele era ciumento, zeloso do lugar que conquistara com sua história e não com sinergias. "Assim como Glauber Rocha deixou filhos bastardos, Francis deixou apenas imitadores", conclui Sérgio Augusto. "A 'esquerda cuecona'", a expressão é de sua lavra, "é tão burra que não é difícil demarcar seu território no outro extremo ideológico. Você já sabe o que estas pessoas vão escrever, ao contrário do Francis, que continuava a nos surpreender."

Desconfio que a memória do amigo saudoso, capaz de fazer uma imitação impagável do baiano malemolente, seria beneficiada por umas férias no litoral, longe da multidão insensata.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado na revista S.A.X., em abril de 2008. Leia também Especial "Paulo Francis".

Lúcia Guimarães
Nova York, 13/10/2008
(Digestivo Cultural)
(Obs.: acompanho P.F. desde a época do Pasquim. Tinha e tenho muitas reservas a ele, mas, como diria, era um gênio de direita, ao final de vida)