Democracia:

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"Ensina-me SENHOR a ver as minhas próprias faltas e apaga-me a vocação de descobrir as faltas alheias." Emanuel

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Literatura

O REMOVEDOR DE ESMALTE DE UNHA


Carmélia Aragão



Há muito tempo deixei de ter vísceras. Nada de esôfago, estômago, intestino, no lugar, um pires de porcelana. Na garganta, uma colher atravessada. No crânio, o nome dele corroído, enferrujado como uma placa de rua antiga. É assim que me sinto: objeto, coisa, quase, um processo que começou quando conheci M. que ao saber o quanto o amava, deixou-me. O meu amor era pesado demais, incondicional demais, bastava que M. voltasse. Não voltou.


Procurei nos hospitais, nas casas noturnas, no trabalho. Esperei no corredor, nas escadas, na portaria, na praça. Fui a cartomantes. Adoeci. Não querer existir é diferente de querer morrer. É diferente de não querer nascer, de não querer saber mais do próprio nome, nem da própria imagem. Fiz-me sentinela. Nem sinal da morte. Na rua, M. me surgiu com uma mulher pequenina, tão bonita, tão sorridente como eu ao conhecê-lo. Tornei-me viúva. Um morto não sorri, não cumprimenta, não fala. Um morto deixa objetos, cartas, roupas, lembranças sem volta. Abandonei tudo que era dele e meu.


Comecei a andar nos passos daquela mulherzinha para compreender. Chamava-se "A". Ela me despertava sinais, aparentemente, irracionais de fuga, raiva e pesar de mim mesma. De tão perfeita, A. me remetia a uma sequência de imagens silenciosas como a ordem alfabética dos dicionários; a sombra calculada entre um jarro e duas maçãs; a vitrine de uma loja de roupas caras; o tule rosa que prende as flores; os cartões postais; as fotografias de casamento; o vapor dos telhados de zinco; a porta de um auditório vazio; os rótulos dos produtos de limpeza, além do rótulo de um removedor de esmalte de unhas.


Há muito tempo deixei de ter vísceras. Objetos compõem todas as partes do meu corpo. Quando eu morrer, será, certamente, a autópsia mais estranha que já fizeram. Não canso de pensar a cara de espanto dos médicos, mesmo agora enquanto tomo um café depois do expediente. Então A. me apareceu, a cara suja, carregada por duas mulheres, uma delas, a mãe. Sentaram-se ao meu lado como se me conhecessem tão bem quanto as conhecia, pareciam esperar de mim todas as respostas, as saídas, as palavras. Quebrei a formalidade silenciosa olhando nos olhos de A.


– O que você quer?
– O telefone...
– Que telefone? - fingi um descaso vitorioso.
– Me ajude.


Meu sangue de água sanitária, detergente, ácido sulfúrico me avermelhou o rosto, estava feliz com a humildade, a súplica, a humilhação da nova viuvinha. À noite, A. deitou-se comigo em sonho, senti de perto seu cheiro de abandono e sua voz de ausência. Prometi-lhe que seríamos amigas, M. não voltaria para nenhuma de nós.




(Carmélia Aragão é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade federal do Ceará. Tem publicado o livro de contos Eu vou esquecer você em Paris, ganhador do III Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará-SECULT, em 2007)

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